Título: A Participação do Poder Local na Administração da Educação - A Relação Escola-Autarquia
Autor: J. M. Gomes Evangelista
Universidade Católica Portuguesa - Lisboa
Novembro - 2004
RESUMOO estudo centra-se na participação da autarquia na administração das escolas, com enfoque na relação que se estabelece entre as duas organizações. Passados seis anos de vigência do decreto-lei n.º 115-A/98, pareceu-nos pertinente saber mais sobre os efeitos que produz na escola e na política da relação escola-autarquia, desenvolvendo-se o nosso estudo em três eixos principais de pesquisa: (i) identificação das características da participação da autarquia na Assembleia de Escola, (ii) identificação dos principais contextos das relações entre a escola e a autarquia e a substância objectiva dessas relações e (iii) interpretação do que, para o actor autárquico, estará em jogo nessa relação.
O poder local tem visto crescer as suas competências próprias na área da educação e tem vindo a ter um envolvimento e uma participação na administração das escolas cada vez maior, constituindo-se como um actor a ter cada vez mais em conta na organização escolar. Utilizando o paradigma político de Michel Crozier e Erhard Friedberg, adoptamos uma definição interpretativa e relacional da Escola, considerando as organizações como sistemas de acção e a organização escolar como o contexto onde se estabelecem e actualizam as relações interactivas que constituem a actividade social da educação formal. Olhando a organização escolar como sistema de acção concreto onde se desenvolve a relação escola-autarquia, utilizámos a adordagem política para descrever, analisar e compreender a participação do actor autárquico na organização escolar.
No desenvolvimento da investigação, adoptámos um paradigma qualitativo, que considerámos o mais adequado aos objectivos do estudo, nomeadamente ao conhecimento e descrição da actividade dos actores, como processo, e à interpretação da interdependência entre eles, para chegarmos ao conhecimento dos mecanismos de regulação das estratégias que utilizam na gestão dos problemas. Focalizando-se na investigação de um fenómeno actual, no seu próprio contexto, sem que o investigador exerça qualquer tipo de controlo sobre os acontecimentos, trata-se de um estudo de caso de um município com um Agrupamento de Escolas com estabelecimentos de educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico e uma Escola Básica dos 2º e 3º ciclos do ensino básico com ensino secundário, que constituem todas as escolas do concelho.
A lógica profissional atravessa toda a acção da autarquia. Consciente da dificuldade com que os professores encaram a intervenção de actores com lógicas diferentes da sua na definição das orientações da Escola, o actor autárquico abdica desta intervenção e das suas lógicas de poder local e faz prevalecer na sua acção a lógica profissional dos professores, não cumprindo a finalidade principal da sua presença no órgão de direcção da Escola, como representante da população. Para além de contribuir para a manutenção de uma “coligação” com os Presidentes dos Conselhos Executivos, esta acção mais passiva e “pacífica” permite também evitar mais responsabilidades, que não estão interessados em assumir no actual contexto político. As lógicas de poder, de parceria e de desenvolvimento local combinam com a lógica profissional com ponderação diferente, conforme se trata da relação do actor autárquico com o Agrupamento de Escolas, com a EB 2,3 ou no âmbito da relação Escolas-Ministério-Autarquia. A participação da autarquia na Assembleia só por via indirecta e pouco perceptível poderá acrescentar alguma coisa à Escola. Esta comunidade educativa, não se podendo considerar um mero dispositivo retórico, está, no entanto, longe de constituir uma verdadeira horizontalidade de relações de poder e comunicação, capazes de ajustar e reajustar o controlo “vertical” da hierarquia centralizadora, podendo ser comparável a uma versão “doce” no exercício da hegemonia e dominação dos professores, legitimada pela presença de outros actores de poder insuficiente ou pouco disponíveis para o utilizar.
ABSTRACT
This work focuses the participation of the local council in the school administration stressing the relation established between the two organizations. Six years after the act 115-A/98, it seemed relevant for us to get more knowledge about the effects that it causes in school and the policy of the relation school – local council. So our work is developed in three main aims of research: (i) identification of the characteristics of the participation that the local councils have in “School Meetings”, (ii) identification of the main contexts of the relation between school and local councils and (iii) the interpretation of what is at stake in that relation as far as the local councillor.
The local authorities have been increasing a higher and higher involvement in school administration, becoming full partners in school organization. Using the political pattern of Michel Crozier and Erhard Friedberg, we adopted an explanatory and relational definition of school, regarding the organization as systems of action and school organizations as a context, where the interactive relations that formed the social activity of formal education, are established and modernized. Regarding the school organization as a truly system of action where the relation school – local councils is developed, we used the political approach to describe, analyse and understand the participation of the local councillor as a partner in the school organization.
In the follow up of the research we adopted the qualitative pattern that we considered the most suitable to the goals of this work, namely, the understanding and description of the partners’ activities, as a process, and the understanding of their interdependence to reach the mechanism of the strategies they use to manage the problems. This work is based in the investigation of a nowadays’ phenomenon, in its own context, where the researcher has no control over the events. It is a case study in a town, involving all types of schools existing in it: infant, primary and secondary schools.
The “professional logic” concerns all the action of the local council. Conscious that the teachers will accept unwillingly the interference of partners with “logics” different from their own, as far as the school guidelines are concerned, the local councillor gives up this sort of interference and his “logics” of the local power and will act within the “professional logic” of the teachers and will not achieve the main purpose of his presence in the School Board as a representative member of the population. Besides contributing to the maintenance of the “coalition” with the Principals, this more passive and peaceful action also avoids more responsibilities they are not interested in assuming in today’s political context. The “logics of power”, “of partnership” and “local development” combine with the “professional logic” with different ponderation either concerning the relation of the local councillor with the School Grouping, with Primary Schools or as far as the relation School–Ministry–Local Councils. The participation of the local authorities in the “School Meetings” will be effective as far as school administration, if they are able to use indirect unperceivable ways. This school community, far from being a mere rhetorical device, is, however, far from setting up a truly horizontality of relation of power and communication, capable of adjusting and readjusting the “vertical” control of a centralized hierarchy. It can be comparable to a “soft” version in the exercise of hegemony and supremacy of the teachers, legalized by the presence of other partners with insufficient power or not willing to use it.INTRODUÇÃOO estudo que se apresenta, intitulado “A Participação do Poder Local na Administração da Educação – A Relação Escola-Autarquia”, centra-se na participação da autarquia na administração das escolas e foi desenvolvido no âmbito do Mestrado em Ciências da Educação, área de Gestão de Escolas.
O interesse e o estudo das relações escola-comunidade teve um novo impulso com a criação de algumas iniciativas de territorialização das políticas educativas pelo Mundo, nomeadamente as Educational Priority Areas (EPA), nos Estados Unidos, e as Zones d’Éducation Prioritaires (ZEP), em França, para combater o insucesso escolar em meios socialmente desfavorecidos, surgindo, depois, em Portugal, os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP).
A territorialização da acção educativa, consubstanciada nas sucessivas descentralizações de competências, de acordo com Canário (1998, cit. por Guedes, 2002, p. 46), assentará em três pressupostos: (i) O reconhecimento da ingovernabilidade dos sistemas educativos, principal razão da transferência dos problemas para o governo local, (ii) a constatação de que a escola deixa de ter o monopólio da educação e (iii) o reconhecimento da importância do local no desenvolvimento de políticas de desenvolvimento integrado. O primeiro dos pressupostos estará relacionado com a debilitação do Estado, consequência de fortes pressões sociais com que é cada vez mais frequentemente confrontado, resultado de promessas eleitorais criadoras de expectativas demasiadamente altas.
As competências legalmente atribuídas às autarquias locais na área da educação repartem-se pelas câmaras municipais e juntas de freguesia, fundamentalmente no âmbito da acção social e manutenção de instalações. O decreto-lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, veio reforçar essas competências no âmbito da administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e ensinos básico e secundário, nomeadamente com a sua participação no órgão de direcção, a assembleia de escola.
A representação das autarquias locais na assembleia de escola está a cargo de um ou dois elementos (eleitos ou técnicos), de acordo com o regulamento interno da escola ou agrupamento de escolas. Esses representantes actuarão sob a coordenação e acompanhamento de estruturas autárquicas, de onde serão emanadas as orientações técnicas e políticas, vinculadoras da Câmara Municipal.
A assembleia de escola é o órgão de direcção onde é garantida a participação de todos os intervenientes do processo educativo, com interesses diferentes. Órgão onde se devem jogar esses interesses, exprimindo-se conflitos entre os actores e entre estes e o governo central, e onde se fará política e se deverá definir a(s) política(s) da escola.
Mas o discurso da modernização convive, na prática com a lentidão e a burocracia e as políticas educativas de autonomia e gestão das escolas não têm sido acompanhadas por uma verdadeira e devida descentralização do sistema educativo.
Ainda assim, estas atribuições e competências têm aumentado ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Procurando uma melhoria de eficiência, o governo central tem vindo a aumentar as competências do poder local na administração do sistema de ensino, esperando uma desconcentração de problemas no Ministério da Educação, acompanhada de uma redução da despesa. Atribuindo às autarquias locais, sobretudo às câmaras municipais, novas competências associadas à gestão do sistema educativo local, o decreto-lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, insere-se neste contexto.
A lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, vem, entretanto, estabelecer um novo quadro de referência para as competências das autarquias locais, revogando legislação anterior referente a esta mesma matéria. Relativamente à área da educação, não se verificam alterações substanciais, mantendo-se nos órgãos municipais as competências relativas à participação no planeamento e gestão dos equipamentos educativos, construção, apetrechamento e manutenção dos estabelecimentos de educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico, transportes escolares, gestão de refeitórios e acção social escolar na educação pré-escolar e 1º ciclo do ensino básico. A elaboração da Carta Escolar, a criação dos Conselhos Locais de Educação, como órgão consultivo do município, e o apoio ao desenvolvimento de actividades complementares de acção educativa e às actividades extracurriculares, configuram as novas competências atribuídas por este diploma. Estas duas últimas carecendo de regulamentação que melhor as explicite e permita a sua aplicabilidade.
Substituindo as designações de Conselho Local de Educação e Carta Escolar e tendo por objecto os Conselhos Municipais de Educação e a Carta Educativa, foi publicado o decreto-lei n.º 7/2003, de 15 de Janeiro, visando a coordenação da política educativa ao nível municipal e uma maior eficiência e eficácia do sistema educativo, analisando, acompanhando e propondo acções conducentes à melhoria do referido sistema.
Assim, conjugando fragilidades do Estado com capacidades gestionárias das autarquias, a descentralização de competências e a consequente territorialização das políticas educativas é um fenómeno claramente político e nunca administrativo ou jurídico (Guedes, 2002), como poderíamos pensar.
Numa descentralização muito retórica, as autarquias locais, com competências mas sem poder político nesta área e sem os recursos financeiros que consideram adequados, resistem a um anunciado incremento de competências nesta área de intervenção. Nas escolas, as opiniões dividem-se entre a possibilidade de mais recursos fornecidos pelo poder local e a sua possível “intromissão” nos seus assuntos internos. Por outro lado, sabemos que grande parte das autarquias acaba por desenvolver actividades com as escolas que ultrapassam as competências formalmente atribuídas pelo poder central, como é o caso de projectos sócio-educativos, recursos humanos, formação profissional e outras.
Pese embora o poder quase absoluto dos professores no órgão de direcção, a escola é hoje uma organização onde se confrontam interesses antagónicos da comunidade: dos pais e encarregados de educação, dos professores, dos alunos, do pessoal não docente, das autarquias locais e ainda, nalguns casos, dos interesses culturais e económicos da região. Actores que se confrontam, usando os seus poderes formal e informal, como noutras organizações. A assembleia é o órgão de direcção, responsável pela definição das linhas orientadoras da actividade da escola e onde participam, com direito a voto, os diversos actores, representantes dos vários corpos que referimos.
Passados seis anos de vigência do decreto-lei n.º 115-A/98 e perspectivando-se alterações legislativas nesta matéria, parece-nos pertinente saber mais sobre os efeitos que produz na escola, como organização, e na política da relação escola-autarquia, sendo o objecto do nosso estudo a participação do poder local na administração das escolas, e formulando-se a seguinte
Pergunta de Partida: Como se caracteriza a participação da autarquia na administração das escolas?
Objectivos do EstudoOs diplomas legais que, ao longo dos anos, têm definido as regras da administração e gestão das escolas (decreto-lei n.º 769-A/76, decreto-lei n.º 172/91 e decreto-lei n.º 115-A/98), têm consagrado um aumento progressivo da participação do poder local na administração da educação, actualmente e de uma forma generalizada com representantes nas assembleias de escola, órgão de direcção do actual regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário.
Assim, aparecem novos actores, com papéis, interesses e discursos em diversos contextos educativos que trazem, necessariamente, discussão, conflitos, acções e novos fenómenos ao processo educativo com o inevitável aumento de complexidade. Esta conflitualidade, geradora de constrangimentos e oportunidades, deverá ser considerada natural, indiscutível e inevitável, analisada e compreendida no plano das relações dialécticas entre o local e o global, e deverá ser trabalhada no plano da investigação empírica (Ferreira, 1999).
Entre 1999 e 2001, decorreu um Programa de Avaliação Externa do Regime de Autonomia, Administração e Gestão das Escolas e Agrupamentos de Escolas definido pelo decreto-lei n.º 115-A/98, de 4 de Maio, encomendado pelo Ministério da Educação à Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, que, no relatório sectorial 6 - A intervenção dos municípios na gestão do sistema educativo local: competências associadas ao novo regime de autonomia, administração e gestão - refere a necessidade de
“mais estudos, e de outra natureza, para se poder ter uma ideia mais precisa sobre o que realmente se passa no terreno: por exemplo, sobre qual é a real intervenção que os representantes autárquicos têm nas assembleias de escola, sobre os mecanismos de coordenação e acompanhamento da participação municipal nas assembleias de escola e de agrupamento (que parecem relativamente fracos), sobre os processos de constituição de agrupamentos depois da publicação do decreto regulamentar n.º 12/2000, sobre as razões pelas quais certos municípios divergem dos demais num ou noutro aspecto”.
Centrando-se o estudo na política da relação escola-autarquia, consubstanciado na interpretação da acção do representante da autarquia na assembleia de escola e dos jogos políticos que se estabelecem entre a autarquia e o poder central e entre o representante autárquico e os outros representantes com assento na assembleia de escola, pretendeu-se descrever, analisar e compreender a participação da autarquia na administração da escola, atingindo-se os seguintes objectivos:
Conhecer os mecanismos de coordenação e acompanhamento da participação municipal na assembleia de escola;
Caracterizar a participação do representante da autarquia na assembleia de escola;
Analisar os jogos políticos que se estabelecem entre a clientela autárquica e o poder central e entre essa mesma clientela e os outros clientes do órgão de direcção;
Identificar as percepções e representações que os outros actores têm da participação do actor autárquico na administração da escola;
Identificar as lógicas da participação do autarca na administração das escolas;
Comparar a participação da autarquia na administração da escola básica do 2º e 3º ciclos com ensino secundário com a mesma participação no agrupamento horizontal de escolas.
Questões de InvestigaçãoO estudo desenvolveu-se em três eixos principais de pesquisa:
1. Identificação das características da participação da autarquia na assembleia de escola, procurando-se responder às seguintes questões:
1.1. Como escolheu a autarquia o seu representante na assembleia de escola?
1.2. Como faz a autarquia a coordenação e o acompanhamento da participação do seu representante?
1.3. Qual a assiduidade do representante da autarquia nas reuniões da assembleia?
1.4. Que tipo de participação adopta o actor autárquico nas reuniões da assembleia?
1.5. Quais os efeitos produzidos na organização escolar, relacionadas com a participação da autarquia na administração da escola?
2. A relação escola-autarquia desenvolver-se-á em vários contextos, entre os quais a assembleia de escola, órgão de direcção onde se deverá(ão) definir a(s) política(s) da escola, deverá ser palco do jogo político, onde os actores, usando de uma racionalidade “estratégica”, fazem a negociação e procuram chegar às decisões que melhor sirvam os seus interesses. O segundo eixo de pesquisa tratará das relações entre a escola e a autarquia, procurando identificar os principais contextos desse relacionamento e a substância objectiva dessas relações, procurando responder às seguintes questões:
2.1. Em que contextos de acção se estabelece a relação escola-autarquia?
2.2. Como percepcionam os outros actores a participação do actor autárquico na administração da escola?
2.3. Que representações fazem os outros actores da participação da autarquia?
2.4. Que jogo político se estabelece entre a clientela autárquica e o poder central?
2.5. E qual o jogo político estabelecido entre a clientela autárquica e os outros clientes da assembleia?
3. No terceiro eixo de pesquisa procurar-se-á interpretar o que, para o actor autárquico, estará em jogo nesta relação escola-autarquia, ou seja, com que sentido interpretam e monitorizam a sua acção na assembleia de escola e na organização escolar, ordenando de forma precária e provisória a realidade organizacional, que se apresenta aparentemente fragmentária e dispersa (Sarmento, 2000: 147). Pretender-se-á responder às seguintes questões:
3.1. Que representações da escola tem o autarca representante da autarquia?
3.2. Quais os interesses da autarquia e do seu representante na assembleia de escola?
3.3. Quais as diferenças das lógicas de participação do autarca na administração das duas unidades educativas?
A investigação foi desenvolvida em três fases:
i. Num primeiro momento realizou-se a pesquisa bibliográfica, procedendo-se à mobilização dos conceitos que se julgaram ser fundamentais para o estudo;
ii. Não abandonando por completo a primeira fase, seguiu-se o estudo empírico propriamente dito, procedendo-se à recolha de dados;
iii. Concluiu-se com a interpretação e interligação dos dados e a elaboração do presente relatório de investigação.
A dissertação apresenta-se organizada em dois volumes, estando o primeiro dividido em três partes, para além da introdução e da conclusão.
Na primeira parte, Escola-Autarquia – Uma Relação “Obrigatória”, fazemos uma mobilização conceptual da teoria subjacente às temáticas deste estudo, resultante da revisão da literatura que efectuámos, e está organizada em quatro capítulos. O primeiro capítulo é reservado a uma abordagem sociológica das organizações, fazendo referência a algumas das suas imagens como contributo para uma visão holística da representação da Escola como organização, dando especial relevo à perspectiva política que utilizamos na investigação. No segundo capítulo falamos das lógicas de acção que os actores mobilizam e combinam permanentemente nos sistemas de acção em que se integram e, através das quais poderemos compreender melhor a participação do actor autárquico na organização escolar. Os dois outros capítulos fazem uma abordagem histórica da administração local da educação em Portugal, da dicotomia “local” / ”global” das políticas e do estado da relação escola-autarquia, focando dois casos de política local de educação: os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária e os Conselhos Locais de Educação.
A segunda parte, justificando a nossa opção metodológica, fazemos uma abordagem conceptual e epistemológica da Metodologia de Investigação que utilizámos, bem como das técnicas utilizadas e, relativamente à componente empírica, a apresentação do sujeito do estudo e uma descrição pormenorizada do nosso procedimento ao longo da investigação.
Na terceira parte, fazemos a Apresentação, Análise e Interpretação dos Resultados, intercalando segmentos de conteúdo de texto dos relatórios produzidos que possam contribuir para a melhor compreensão da nossa análise e interpretação.
Após a apresentação sintética das Conclusões resultantes da interpretação dos resultados da investigação, em Considerações Finais procuramos construir algumas ideias que possam contribuir para futuras reflexões ou configurar novas pistas de investigação sobre esta problemática.
Os anexos constam de um segundo volume, com os seguintes documentos:
Cartas dirigidas aos Presidentes dos Conselhos Executivos e das Assembleias de Escola;
Codificação dos documentos;
Segmentos de texto de actas dos Conselhos Pedagógicos e Executivos e Assembleias de Escola;
Relatórios das observações das reuniões das Assembleias de Escola;
Guiões e relatórios das entrevistas;
Grelha de categorias e análise de conteúdo.
CONCLUSÕESConscientes das limitações do estudo qualitativo que procurámos desenvolver, apresentamos as suas conclusões, resultantes da interpretação dos dados que apresentámos. Utilizando várias técnicas, este estudo de caso ancorou fundamentalmente em oito entrevistas semi-estruturadas que, sendo a técnica utilizada para obtenção do maior volume de dados, “fornecerá” ao estudo todas as suas limitações relacionadas com divergências de objectivos e interesses do entrevistado e do investigador (entrevistador), dizendo apenas o que pode e o quer sobre as situações que lhe são colocadas. Tentámos minorar estas limitações, quer através do comportamento informal do entrevistador, quer na utilização de dados complementares, obtidos recorrendo à utilização de outras técnicas, como a observação de reuniões das Assembleias de Escola (AE).
Na observação não participante, pensamos que, utilizando o conhecimento pessoal que já tínhamos de boa parte dos membros das AE, conseguimos criar uma relação próxima e informal que permitiu, de alguma forma, “passarmos despercebidos” e assim diminuir o impacto que a presença do investigador acaba sempre por ter.
A nossa experiência enquanto professor e autarca não facilitou a presunção da nossa relativa ignorância sobre a matéria em análise, como se aconselha para conseguir interpretações independentes das convicções e perspectivas do investigador; embora conscientes da inevitabilidade do risco de influência da sensibilidade e conhecimento do investigador na validade e fiabilidade do estudo, tentámos que tal não acontecesse sendo, no entanto, outro dos possíveis factores limitantes do estudo.
Tendo como objecto a participação do poder local na administração das escolas, as conclusões do nosso estudo de caso serão apresentadas de acordo com os três grandes eixos de investigação, que formarão um todo, procurando dar sentido às ideias apresentadas e gerar contributos para responder à nossa pergunta de partida:
Como se caracteriza a participação da autarquia na administração das escolas?
O estudo desenvolveu-se num pequeno município (ver Quadro II.3.1.) de uma área metropolitana de Portugal continental, com fortes tradições, enraizadas em bairros do seu núcleo histórico. Integrado numa região em fase de grande desenvolvimento, o concelho registou, na década de 1991-2001, um dos maiores crescimentos demográficos do país (27% na população residente) e grande expansão urbanística (37% nos mesmos dez anos).
O concelho tem quatro estabelecimentos de educação pré-escolar e seis escolas do 1º ciclo do ensino básico integradas num agrupamento, uma escola básica do 2º e 3º ciclos do ensino básico com ensino secundário e uma escola secundária em fase de construção. O estudo incide no Agrupamento e na EB 2,3, abrangendo todas as escolas em funcionamento no concelho, nos anos de 2002 e 2003.
Na estrutura orgânica da Câmara Municipal, a área funcional da Educação está integrada da Divisão dos Serviços Sociais e Culturais, com três funcionárias, duas em exclusividade e a Chefe de Divisão, que reparte a sua actividade com as outras áreas funcionais da Divisão. Esta pequena estrutura suporta a quase totalidade da relação da autarquia com as escolas do concelho.
Neste pequeno município, com um universo de apenas duas Assembleias de Escola, o Vereador optou por ser ele o representante da autarquia no órgão de direcção de cada uma das duas unidades educativas do concelho: o Agrupamento horizontal de escolas e a EB 2,3 com ensino secundário.
Com 76% de presenças, o Vereador revelou uma boa assiduidade às reuniões das Assembleias de Escola e só em 14% delas a autarquia não esteve representada. Nos seus impedimentos é substituído pela Chefe de Divisão e, em caso de reuniões simultâneas, Vereador e Chefe de Divisão, professores de profissão (do 3º ciclo do ensino básico e ensino secundário e do 1º ciclo do ensino básico, respectivamente), optam pela Assembleia da Escola mais relacionada com o seu nível de ensino. O critério adoptado pelo actor autárquico valoriza competências tecnico-pedagógicas, sobrepondo-as às competências políticas dos actores. Enquanto membro da Assembleia de Escola, o actor autárquico percepciona-se numa função predominantemente técnica e pactua com a lógica profissional dos professores, que dominam o órgão de direcção.
Numa autarquia quase sempre representada pelo próprio Vereador, os mecanismos de coordenação, acompanhamento e monitorização da participação do actor autárquico na Assembleia de Escola são débeis, com carácter de grande informalidade e na forma verbal, entre Vereador e Chefe de Divisão, só em casos muito excepcionais chegando ao Presidente da Câmara.
O actor autárquico, com mais competências no âmbito da educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico, adopta uma participação mais activa na Assembleia de Escola do Agrupamento, essencialmente reactiva e na sequência de intervenções dos outros actores sobre matérias relacionadas com o exercício das competências autárquicas, no âmbito de apoios financeiros e construção e manutenção de edifícios e equipamentos. Ainda assim, usando a escala usada por Pinhal & Viseu (2001: 40), esta participação não passará de reservada ou mesmo passiva em muitas situações. Na Assembleia da EB 2,3, os dados disponíveis conduzem-nos a uma participação da autarquia passiva ou mesmo de mero observador em muitas situações.
A participação da autarquia na Assembleia de Escola não cumpre a sua finalidade principal: como órgão com legitimidade política dentro da comunidade e em representação da população, participar na concepção de projectos da escola e assim contribuir activamente para a definição das principais linhas orientadoras da política da escola.
Desta forma, a participação da autarquia na Assembleia de Escola só por via indirecta e pouco perceptível poderá acrescentar alguma coisa à Escola. O actor autárquico terá uma mais valia de conhecimento actualizado dos problemas da escola e do seu funcionamento que, numa lógica de estratégia (Dubet, 1996: 121), com uma racionalidade instrumental, utiliza na sua acção na Escola e no jogo da sua relação com os outros actores, mas também no jogo da política autárquica e no confronto político-partidário concelhio. Assim, omitindo a sua função de direcção na Escola, o actor autárquico utiliza a sua presença na Assembleia para melhor controlar fontes de incerteza, que poderá utilizar como poder, nas suas relações com outros actores, internos ou externos à escola, em diversos contextos de acção.
Com uma lógica profissional, esta é a participação desejada pelos professores e, no actual contexto político em matéria de descentralização de recursos e competências, conveniente à autarquia, evitando maior envolvimento, gerador de mais responsabilidades.
A relação Escola-Autarquia desenvolve-se em quatro categorias de contextos:
a. Na Assembleia de Escola;
b. Na relação Escola-Ministério-Autarquia;
c. Em reuniões e contactos diários;
d. No âmbito de iniciativas da autarquia ou de organização conjunta.
Na Assembleia, órgão de direcção da Escola responsável pela definição das linhas orientadoras da sua actividade, o actor autárquico tem uma participação muito limitada (muitas vezes limitada ao acto de votar favoravelmente) na discussão da política da Escola e na discussão e aprovação dos principais documentos, como o Projecto Educativo e o Regulamento Interno, ou na definição das linhas orientadoras para a elaboração do Orçamento e na apreciação do relatório da Conta de Gerência.
Privilegiando-se o contacto directo com o Conselho Executivo, este contexto de acção fica, de alguma maneira, vazio de conteúdo. No Agrupamento revela-se como um local onde a autarquia, como tutela administrativa e entidade financiadora e prestadora de serviços, participa reactivamente, respondendo a questões levantadas pelos outros actores, em matérias fundamentalmente relacionadas com a construção e manutenção dos edifícios escolares e equipamentos e com o financiamento da Escola. No seu discurso, o actor autárquico mobiliza uma argumentação política ao evocar três ordens de razão para as dificuldades da sua acção:
a. A herança de uma Educação em mau estado, consequência da política do executivo autárquico anterior;
b. Constrangimentos de uma legislação desregulamentada, avulsa, desarticulada e de difícil interpretação;
c. Incumprimento de compromissos da Administração Central e a sua política economicista e centralizadora.
Na EB 2,3, muitas das vezes assumindo um estatuto de observador e entendido pelos outros actores como um parceiro estratégico de grande importância, como fornecedor de recursos para o funcionamento da escola, é sobre essa sua disponibilidade que, pontualmente, intervirá, já que a relação privilegiada é fora deste contexto.
Na relação com a Administração Central, escola e autarquia constituem-se como um único actor local e assumem um confronto político com a lógica centralizadora do Ministério, pela obtenção de recursos e pela manutenção do poder dos principais actores da Escola. Neste contexto, a autarquia usa a força da legitimidade política de representantes da comunidade local para defender os interesses da Escola e dos professores.
Em reuniões de trabalho e no contacto diário prevalecem as representações da autarquia como tutela e da autarquia como parceira. No Agrupamento, predominando as acções consignadas nas competências e atribuições da autarquia, prevalece a autarquia como tutela. Na EB 2,3, prevalecendo as acções “voluntárias”, para além das suas competências e atribuições, prevalece a autarquia como parceira.
Em actividades de complemento curricular, eventos e outras iniciativas de responsabilidade autárquica ou conjunta, a autarquia tem um papel de parceria, participando activamente na concepção e realização destas acções.
Os presidentes dos órgãos de gestão das escolas, na sua relação com a autarquia, combinam duas lógicas de acção que dão sentido a dois comportamentos distintos. Por um lado, com a lógica profissional dos professores (Alves, 1999: 40 e Sarmento, 2000: 175), não reconhecem ao actor autárquico a competência para participar activamente na definição das linhas orientadoras da política da escola como dirigentes da Escola e representantes da comunidade local; por outro lado, evidenciando a lógica de estratégia nesta sua experiência social (Dubet, 1996: 113), valorizam e dão grande visibilidade à acção da autarquia, e “compreendem” as suas dificuldades, defendendo e preservando a imagem do actor autárquico no confronto deste com todos os outros actores da “arena política” da escola.
Para o actor autárquico, a Escola é a instituição responsável pela formação das crianças e dos jovens do concelho. O autarca dá, por isso, grande relevância ao papel da Escola no município, definindo a área da Educação como uma das suas prioridades e privilegiando-a nalgumas das suas acções, relativamente a outras instituições e colectividades. Na medida em que se tratará de criar condições (físicas) para que os alunos possam aceder à educação “de uma forma mais agradável e funcional, facilitando o sucesso educativo e as práticas pedagógicas”, o actor autárquico classifica a sua acção como uma “intervenção social”. Não considera a sua responsabilidade na concepção dos projectos particulares de cada escola e na definição das principais linhas orientadoras da sua política, afastando-se do papel de representante da comunidade local nestas matérias.
Na acção organizada, utilizando uma racionalidade “estratégica”, o actor autárquico relaciona-se com os outros actores por meio de jogos, através dos quais coopera com eles, tendo em conta os interesses que o motiva nesses mecanismos estruturantes e reguladores dessas relações. Identificámos duas categorias de interesses do actor autárquico: interesses cívicos e interesses políticos. Interesses cívicos relacionados com o bom funcionamento da organização escolar, que dizem respeito ao bem público de que beneficiam, directa ou indirectamente, grande parte dos munícipes. Interesses políticos relacionados com a visibilidade da sua acção na Escola, importante na luta pelo poder e no jogo político-partidário local, do qual encontrámos alguns sinais de contaminação na Escola.
Estes interesses darão sentido à acção do actor autárquico e constituem-se como as duas grandes lógicas de acção destes protagonistas da organização escolar (Bacharach & Mundell, 1999: 150) que, numa análise da micropolítica, poderão ser desdobradas em lógicas mais efémeras e que se entrecruzam permanentemente no jogo da “arena política” da Escola, com actores defensores de lógicas divergentes. O actor autárquico gere uma combinação de lógicas de acção, conducentes à satisfação dos interesses que referimos.
A lógica profissional (Alves, 1999: 40 e Sarmento, 2000: 175) atravessa toda a acção da autarquia. Consciente da dificuldade com que os professores encaram a intervenção de actores (como as autarquias locais) com lógicas diferentes da sua na definição das orientações da Escola, o actor autárquico abdica desta intervenção e das suas lógicas de poder local e faz prevalecer na sua acção a lógica profissional dos professores (que eles também são). Para além de contribuir para a manutenção de uma “coligação” com os Presidentes dos Conselhos Executivos, esta acção mais passiva e “pacífica” permite também evitar mais responsabilidades, que não estarão interessados em assumir no actual contexto político.
A lógica de poder (Alves, 1999: 32) permite fazer valer o estatuto de tutela administrativa, principalmente no Agrupamento, pontualmente e de forma pouco acentuada. Pareceu-nos ser uma lógica praticamente inexistente na relação com a EB 2,3.
A lógica de parceria dá sentido a uma grande parte da relação da autarquia com a EB 2,3, no âmbito no financiamento de acções do Plano Anual de Actividades, apoio logístico e pequenas reparações, em substituição da Administração Central. No Agrupamento, no âmbito de actividades de complemento curricular e de outras iniciativas conjuntas a que a autarquia-tutela não estará obrigada.
Na relação Escola-Ministério-Autarquia, combinando lógicas de desenvolvimento local (Sarmento, 2000: 177) e profissional a Autarquia forma com a Escola um único “actor local”, que se confronta com a lógica centralizadora da Administração Central, pela captação de recursos e a manutenção do poder dos dois actores.
Muito embora nos pareça que o maior envolvimento da autarquia no Agrupamento configure mais uma acção estratégica de captação de recursos do que uma postura consciente de uma lógica de desenvolvimento local, poderá ser um indicador de que o acréscimo de competências poderá induzir outro tipo de envolvimento, produto de uma relação de maior intensidade.
Adaptando as diferentes acepções de Sarmento & Ferreira (1999: 96), esta comunidade educativa, não se podendo considerar um mero dispositivo retórico, está longe de constituir uma verdadeira horizontalidade de relações de poder e comunicação, capazes de ajustar e reajustar o controlo “vertical” da hierarquia centralizadora. Esta comunidade educativa poderá ser tão só comparável a uma versão “doce” no exercício da hegemonia e dominação dos professores, legitimada pela presença de outros actores de poder insuficiente ou pouco disponíveis para o utilizar.
CONSIDERAÇÕES FINAISA qualidade do serviço público de educação passa por uma real descentralização das políticas, olhando o “local” como muito mais que um território administrativo, constituindo-se como um produto de interacções estruturadas pelos actores sociais que, no contexto dos problemas, terão capacidade de produzir soluções particularizadas, mais adequadas e, por isso, com mais hipóteses de sucesso.
Maior poder de decisão dos actores locais, consubstanciando parcerias fortes, participativas e consideradas imprescindíveis para a constituição de uma forte conexão em rede e com quadros referenciais criados a partir das comunidades educativas, poderão deslocar as lógicas de acção no sentido da sua fundamentação local. Com uma Escola mais autónoma, a regulação local (da autarquia) e regional (de um poder regional) poderá proporcionar uma coordenação e ajustamento permanente de uma pluralidade de acções, que se confrontem e enriqueçam o processo educativo, concretizando a política educativa local.
O Projecto Educativo de Escola fortemente enraizado no “local” estará sempre muito conectado (dependente) com a relação escola-autarquia resultante desta “descentralização” e poderá nascer de uma política que possa integrar medidas que, mobilizando algumas ideias da nossa revisão da literatura, nos atrevemos a referir:
a. Medidas conducentes a uma maior autonomia das escolas e descentralização de competências para as autarquias locais;
b. Celebração de contratos de autonomia, contribuindo para a clarificação de responsabilidades da Administração Central, Autarquia Local e da Escola, e constituindo uma matriz que permita, no âmbito de uma autonomia local acrescida, o estabelecimento de outros compromissos, correspondentes à inovação e à diferenciação das políticas;
c. Valorização da dimensão política nas novas competências e recursos a serem atribuídos e na participação e liderança dos cidadãos na gestão das lógicas e dos interesses que conduzam ao Projecto Educativo que melhor sirva cada escola;
d. Implementação de Conselhos Locais de Educação, como órgão de coordenação e consulta, com uma matriz que possibilite flexibilidade para a inclusão de parceiros locais relevantes, que lhe conferisse credibilidade e peso institucional para dar pareceres e pudesse conduzir a uma política educativa local, com o seu projecto educativo;
e. Nos termos da Constituição da República Portuguesa, criação de Regiões Administrativas que, exercendo uma regulação regional, possa, conjuntamente com uma Escola mais autónoma, impedir que a regulação local possa fazer emergir uma autarquia como “poder absoluto” mais próximo;
f. Implementação de um quadro legislativo com competências partilhadas, de modo claro, entre a Escola e as Administrações Central, Regional e Local;
g. Uma reforma do Sistema Político Português que possa moralizar o exercício de cargos públicos e credibilizar a política, como actividade nobre no exercício do poder democrático, e os políticos, como actores de um serviço público de grande relevância.